sábado, 3 de dezembro de 2016

SUPERMAN - ANÁLISE DE UM MITO AMERICANO PARTE 6 AS SOMBRAS DO IMPÉRIO




“Você não conhece o poder do lado sombrio” 
(Darth Vader, O Retorno de Jedi, 1983)



           Alexander Joseph Luthor. Não houve personagem da mitologia do Superman que mudasse tanto quanto esse vilão careca que sempre persegue o Homem de Aço com um pedaço de kryptonita. Transformou-se tantas vezes que, em suas últimas versões, Lex passou a se parecer mais com um herói trágico do que com um vilão. Sua trajetória fadada ao fracasso parece uma jornada do herói que deu errado.

         Em Smallville, por exemplo, Lex tem seu próprio velho sábio na figura de seu inescrupuloso pai, Lionel Luthor, que o conduz a seu destino como o arqui-inimigo do Superman. Semelhante a Édipo e Macbeth, Lex parece não poder fazer nada contra o futuro tenebroso que lhe é reservado. Sua crença neurótica de que os filhos seguem inevitavelmente os passos dos pais, leva-o a tornar-se pior que Lionel. Lex foi ensinado a seguir os “passos dos grandes”, como diria seu pai, mas os exemplos que seguiu não foram os mais morais. Ele cita Maquiavel e Nietzche em várias ocasiões. Para um Luthor, ser grande significa ser poderoso.

          A fonte da qual Gough e Millar beberam, aliás, é sinônimo dessas palavras. Alexandre da Macedônia ou Alexandre, o Grande, possui muitas semelhanças com Alexander Luthor. Ambos confiavam apenas em um amigo que amavam acima de qualquer outra pessoa, sofriam conflitos internos por causa da loucura de suas mães, odiavam seus pais pela opressão e imoralidade que representavam, buscavam se tornar maiores do que eles e foram mais sanguinários do que seus antecessores, embora tenham conquistado o poder almejado. O mal de ambos, que causaria sua derrocada, foi o mesmo: sede insaciável de poder. Analisando o personagem Luthor sozinho, a teoria de Adler seria muito mais eficaz para explicá-lo do que a de Jung. Contudo, dentro do contexto completo do mito, Lex Luthor representa, melhor do que todos os rivais que o Superman já teve, o arquétipo que Jung chamou de “a sombra do eu”.


Lex Luthor e seu pai, Lionel, na série de tv Smallville. 

           “A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo [...]. Nesta faixa mais profunda o indivíduo se comporta, relativamente às suas emoções quase ou inteiramente descontroladas, mais ou menos como o primitivo que não só é vítima abúlica de seus afetos, mas principalmente revela uma incapacidade considerável de julgamento moral”. (JUNG, 1982,p.7)

        O arquétipo da sombra é o típico vilão. O completo oposto do herói. Em uma outra definição mais clara e direta, Jung o define assim:

              “A coisa que uma pessoa não quer ser”. (JUNG apud SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988)

            No entanto, deve ficar claro que a psicologia não trabalha com conceitos como Bem e Mal, Certo e Errado. Quando falamos de sombra, não a classificamos como lado do bem ou lado do mal. Acontece que esse arquétipo armazena aquilo que é considerado mal pelo indivíduo. Como o inconsciente pessoal é formado pelas experiências que a pessoa tem em sociedade, a sombra tende a armazenar o que é mal para a sociedade. A sombra, porém, também é responsável pelo potencial criativo do indivíduo e pelas emoções mais fortes e espontâneas. Por isso, pessoas muito criativas tendem a parecer loucas às vezes. Logicamente, se o eu for dominado pelo arquétipo da sombra, atingirá a insanidade e se tornará alguém muito perigoso.


Em uma história pouco lembrada do Superman no selo Túnel do Tempo chamada Morcego de Aço, Lex Luthor é dominado pelo arquétipo da sombra, atinge a insanidade total e se transforma no ícone da loucura: O Coringa!

           Durante toda a sua carreira nas histórias do Superman, Lex Luthor representou aquilo que os Estados Unidos não queriam ser, mas, lá no fundo, eram. Luthor é a sombra americana. Antes de ele aparecer, Superman enfrentava gangsters e homens corruptos em geral. Chega a ser cômico, e muitas vezes ridículo, ver o Superman dos anos trinta e quarenta, com toda a sua força, velocidade e invulnerabilidade, enfrentar criminosos normais, armados apenas com uma pistola comum. Há uma explicação para isso. Superman surgiu durante a Grande Depressão, quando a lei seca estava em vigor e os EUA tentavam manter sua imagem de moralistas puritanos. Sujeitos como Al Capone estavam por toda parte e era esse tipo de gente que a “América” queria esconder. Os traficantes de bebidas alcoólicas eram a sombra nessa época.

          Então veio a Segunda Guerra Mundial e aqueles homens engravatados com seus bigodes engraçados não pareciam mais uma ameaça. Não diante da maior ameaça de bigode engraçado que o mundo já conheceu: Adolf Hitler. Numa história entitulada “Super-Homem acaba com a Guerra”, publicada em abril de 1940, o herói se envolve numa Guerra no país fictício de Toran, onde enfrenta um ditador cruel que pretende dominar o mundo com uma nova arma bélica de alta tecnologia. O nome do ditador? Luthor.


Lex Luthor em sua primeira aparição, quando chamava-se apenas Luthor e tinha cabelo.
         Foi a primeira aparição do arquiinimigo do Superman, que ainda possuía uma vasta cabeleira ruiva na época, e é uma referência, ainda que fantasiosa e exagerada, aos ditadores da época, que causaram a Segunda Grande Guerra. Fato é que os EUA sempre tiveram seu lado ditador, sua busca pela formação de um império ideológico global que acreditasse em seu american way of life. Siegel e Shuster projetaram, sem saber, sua sombra Americana em Luthor pela primeira vez. Essa projeção fez com que o personagem se tornasse uma figura mítica oposta ao herói e que se consolidasse como a sombra do símbolo Americano com o passar dos anos.
O Lex Luthor de Gene Hackman no filme de 1978
             Em Super-Homem, o filme, Lex é um completo panaca, embora superinteligente. O filme foi lançado em 1978, no auge da Guerra Fria, quando o maior inimigo dos EUA era a URSS. O povo americano queria acreditar que seu arquiinimigo era um completo idiota, a despeito das armas de última geração que pudesse construir e das estratégias que podia criar para dominar mais algum pedaço do mundo. O mito do Superman nessa época é bastante maniqueísta e tão Americano que chega a doer. O eu dos EUA, representado no Superman, estava hiperinflado. O herói era capaz de fazer o tempo da Terra voltar, podia mover planetas sem esforço e seus poderes aumentavam e se multiplicavam desenfreadamente, indo de super-memória a super-hipnose. Como num esforço inconsciente para esquecer o perigo de uma Terceira Guerra Mundial e de um possível holocausto nuclear, a sociedade projetava em seu mito seu desejo íntimo: que eles (os soviéticos) não sejam tão perigosos quanto querem nos fazer acreditar. Assim, Luthor se tornava cada vez mais impotente diante do Superman, que, por sua vez, assumia cada vez mais atributos de um deus. A respeito desse período, John Byrne escreveu:

              “Os elementos do passado trágico do Homem de Aço foram retratados nos anos sessenta e setenta, mas com um efeito alienante. A paixão por Krypton tornou-se praticamente ofensiva. Cada exclamação de “Grande Krypton!” era um insulto ao mundo que havia sido lar do Super-Homem por quase toda sua vida. Um espiral decadente teve início e parecia muito improvável que se pudesse fazer alguma coisa para reverter a derrocada final do personagem” (BYRNE, 1997, p.29, grifo nosso).

           Umberto Eco também fez menção ao efeito alienante que as histórias do Superman tinham na época:

        “O estar situado numa dimensão temporal permite que atente para a gravidade e a dificuldade das minhas decisões, mas que ao mesmo tempo atente para o fato de que devo decidir, de que sou eu que devo decidir e de que esse meu decidir se liga a uma série indefinida de dever-decidir que envolve todos os outros homens. [...]Os roteiristas do Superman, ao contrário, eles cogitaram uma solução muito mais sensata e original. Essas estórias desenvolvem-se, assim, numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – em que aparece de maneira extremamente confuso o que acontecera antes e o que acontecerá depois, e quem narra retoma continuamente o fio da estória como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns pormenores ao que já dissera. [...] Ao habituar-se a esse exercício de presentificação continua do que acontece, o leitor perde, ao contrário, consciência do fato de que o que acontece deve desenvolver-se segundo as coordenadas de três estases temporais. Perdendo consciência delas, esquece os problemas que nelas se baseiam, isto é, a existência de um liberdade, da liberdade de fazer objetos, do dever de fazê-los, da dor que esse projetar comporta, da responsabilidade que dele provêm, e enfim da existência de toda uma comunidade humana cuja progressividade se baseia sobre o meu projetar”. (ECO, 1970, p.256 a 258 e 261).

             Seria paranóia demais acreditar que isso era feito de propósito. Parece claro que o desejo de fuga da realidade que assolava a sociedade da época era projetado inconscientemente pelos roteiristas nas histórias. Evidência disso é o que Byrne diz a respeito da aparente inevitabilidade de “derrocada final” do mito do Superman. Nenhuma editor em sã consciência mataria sua galinha dos ovos de ouro desse jeito. Certamente o mito teria caído se os EUA perdessem a guerra fria. Felizmente, quem caiu foi o muro de Berlim.

           Num momento em que as projeções inconscientes mudavam precedendo as mudanças que aconteceriam no mundo, a DC comics resolveu contratar John Byrne para recriar o Superman. O escritor e desenhista fez uma mudança essencial para a sobrevivência do mito:

           “Talvez a maior de todas as mudanças [que fiz] tenha sido proposta pelo meu colega Marv Wolfman. Antes um cientista maluco, Luthor tornou-se um super-homem dos negócios, o mais poderoso de Metrópolis... até a chegada do Homem de Aço. O herói tirou de Luthor sua posição privilegiada. Como Salieri em Amadeus, reconhecendo o gênio de Mozart, Luthor sabia que, para voltar a ser o Número Um, deveria eliminar seu rival. Porém, diferente de Salieri, Luthor não aceita a ideia de que o Homem de Aço é melhor do que ele e, por isso, está condenado a fracassar sempre.”(BYRNE, 1997,p.55).

O Lex Luthor de John Byrne na HQ Homem de Aço indo para a cadeia pela primeira vez graças ao Superman,
mas sendo solto logo em seguida pela habilidade de seus advogados caríssimos. 
         Com essas e outras alterações, Byrne alavancou as vendas das revistas do Superman. O novo Luthor era imbatível, principalmente pela boa imagem e reputação que tinha diante do povo de Metrópolis. Era um vilão real, como muitos que conhecemos de nosso mundo cotidiano. Sem saberem, os responsáveis pelas histórias do herói acharam uma das falhas principais e a consertaram:

            “O indivíduo que suprime o aspecto animal de sua natureza pode se tornar civilizado, mas só o consegue às custas da capacidade motivadora da espontaneidade, da criatividade, das fortes emoções e das intuições profundas. Priva-se da sabedoria de sua natureza instintiva, sabedoria que pode ser mais profunda que uma outra a ser proporcionada pelo estudo e pela cultura. Uma vida privada de sombra tende a tornar-se insípida e sem brilho”. (HALL & NORDBY, 1972, p.40 e 41).

             Todavia, a sombra estava de volta e dessa vez no lugar exato de “aquilo que não quero ser, mas sou” dos Estado Unidos. Num mundo em que a grande projeção da sombra, a URSS, estava ruindo, a sociedade Americana viu-se obrigada a olhar para si mesma e fez surgir um mito que gradualmente se tornava cada vez menos alienante. As histórias não eram mais um “presente contínuo”. Se o Superman era contaminado por kryptonita numa edição, por exemplo, passava as próximas três de cama. Quando Lois cortava o cabelo, ele não aparecia comprido na edição seguinte, demorava alguns meses para crescer de novo. Os fatos passaram a aparecer em sequência, e a ter consequências. Os personagens passaram a ter bagagem interior, lembravam-se de fatos acontecidos havia muitas edições e eram afetados por esses fatos. A cada edição, Lex adquiria mais ódio do Superman pelos mais diversos motivos. Nessa fase, Luthor encontrou sua forma praticamente definitiva, como seria representado em todas as versões seguintes: a do capitalista selvagem e cínico. 


Lex Luthor, Presidente dos Estados Unidos da América do Universo DC
             Provando que a era dos quadrinhos alienantes tinha passado, o roteirista Jeph Loeb colocou Lex Luthor na Casa Branca, estabelecendo que, no universo ficcional da DC comics, em vez de George W. Bush, Lex Luthor havia sucedido Bill Clinton como Presidente dos Estados Unidos da América. As semelhanças entre o Presidente Luthor e o Presidente Bush são tantas que poderiam ser assunto de outro artigo tranquilamente, mas o seguinte discurso de Lex é, por ora, suficiente como exemplo:

              “Muito obrigado. Eu não tenho muito a dizer, mas quero falar sobre algumas coisas que ameaçam o nosso país. Todos sabem que o mundo não anda bem. E agora, graças às nossas forças de inteligência sabemos da proliferação de armas nucleares em pequenas nações hostis. Não são exatamente países inimigos. Na verdade são locais nos quais não podemos confiar. Mais do que nunca, a América deve estar forte e preparada. Devemos estar prontos para qualquer coisa. Por isso eu lhes peço que não se prendam a politicagens, mas pensem na segurança de todas as crianças do mundo. Elas não merecem uma vida segura, livre a ameaça do terror?"(Ed Brubaker, Batman, Batman #1, Editora Abril, p.15 e 16, maio de 2002)”.

          Retomando o Übermench de Nietzche, poderíamos ver em Lex Luthor uma melhor personificação sua do que o Superman. Afinal, Lex guia-se por sua própria moral e, tentando comprar até o próprio Homem de Aço, acredita estar “acima do bem e do mal” o que ele demonstra muito bem em Lex Luthor: Biografia não-autorizada:

              “A vida é curta. Eu podia ter ficado como meus pais se tivesse escolhido naufragar em emoções baratas e bebida, como eles. Em vez disso, decidi me tornar um deus. Eu controlo vidas, vidas humanas, ao invés de ser controlado. Posso destruir alguém com um telefonema. [...] meus inimigos continuarão a cair diante de meu império corporativo”. (HUDNALL, James D; BARRETO, Eduardo; KUBERT, Adam; Lex Luthor: Biografia não-autorizada, p.44, julho de 1990, Editora Abril).


Lex Luthor e Superman: A Face Paradoxal da América

          O discurso de Lex representa muito bem a filosofia de Nietzche expressa por um capitalista selvagem. Aliás, é esse lado de Luthor que faz dele a perfeita sombra do Superman, a outra face da mesma moeda. Vejamos da seguinte maneira:

              Digamos que o Übermench tivesse nascido no Kansas e fosse criado num meio que prezasse os valores judaico-cristãos de nossa sociedade capitalista ocidental. Esse seria Clark Kent. Agora, digamos que ele nascesse em Nova Iorque ou em qualquer grande cidade do ocidente e fosse criado num meio que prezasse os valores capitalistas de nossa sociedade judaico-cristã. Esse seria Lex Luthor. 

            Juntos, eles representam o conflito da psique da sociedade ocidental que se originou com o puritanismo inglês defensor do acúmulo de bens sem apego a eles. Superman representa os valores altruístas herdados da filosofia judaico-cristã original que sempre entra em conflito com a ganância do capitalismo e do individualismo, permitidos pelas religiões protestantes que predominam nos Estados Unidos. É um conflito moral ancestral, herdado dos ingleses puritanos que colonizaram a América do Norte, e que se manifesta através dos arquétipos do inconsciente coletivo no mito do Superman. 


Fim da Parte 6
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