Alexander Joseph Luthor. Não houve personagem da mitologia do
Superman que mudasse tanto quanto esse vilão careca que sempre persegue o
Homem de Aço com um pedaço de kryptonita. Transformou-se tantas vezes que,
em suas últimas versões, Lex passou a se parecer mais com um herói trágico do
que com um vilão. Sua trajetória fadada ao fracasso parece uma jornada do herói
que deu errado.
Em Smallville, por exemplo, Lex tem seu próprio velho sábio na figura de
seu inescrupuloso pai, Lionel Luthor, que o conduz a seu destino como o
arqui-inimigo do Superman. Semelhante a Édipo e Macbeth, Lex parece não poder fazer nada contra o futuro tenebroso que lhe é reservado. Sua crença
neurótica de que os filhos seguem inevitavelmente os passos dos pais, leva-o a
tornar-se pior que Lionel. Lex foi ensinado a seguir os “passos dos grandes”,
como diria seu pai, mas os exemplos que seguiu não foram os mais morais. Ele
cita Maquiavel e Nietzche em várias ocasiões. Para um Luthor, ser grande
significa ser poderoso.
A fonte da qual Gough e Millar beberam, aliás, é sinônimo dessas palavras.
Alexandre da Macedônia ou Alexandre, o Grande, possui muitas semelhanças
com Alexander Luthor. Ambos confiavam apenas em um amigo que amavam
acima de qualquer outra pessoa, sofriam conflitos internos por causa da loucura
de suas mães, odiavam seus pais pela opressão e imoralidade que
representavam, buscavam se tornar maiores do que eles e foram mais
sanguinários do que seus antecessores, embora tenham conquistado o poder
almejado. O mal de ambos, que causaria sua derrocada, foi o mesmo: sede
insaciável de poder. Analisando o personagem Luthor sozinho, a teoria de
Adler seria muito mais eficaz para explicá-lo do que a de Jung. Contudo, dentro do contexto completo do mito, Lex Luthor representa, melhor do que todos os rivais que o Superman já teve, o arquétipo que Jung
chamou de “a sombra do eu”.
“A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo [...]. Nesta faixa mais profunda o indivíduo se comporta, relativamente às suas emoções quase ou inteiramente descontroladas, mais ou menos como o primitivo que não só é vítima abúlica de seus afetos, mas principalmente revela uma incapacidade considerável de julgamento moral”. (JUNG, 1982,p.7)
![]() |
Lex Luthor e seu pai, Lionel, na série de tv Smallville. |
“A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo [...]. Nesta faixa mais profunda o indivíduo se comporta, relativamente às suas emoções quase ou inteiramente descontroladas, mais ou menos como o primitivo que não só é vítima abúlica de seus afetos, mas principalmente revela uma incapacidade considerável de julgamento moral”. (JUNG, 1982,p.7)
O arquétipo da sombra é o típico vilão. O completo oposto do herói. Em uma outra definição mais clara e direta, Jung o define assim:
“A coisa que uma pessoa não quer ser”. (JUNG apud SAMUELS, SHORTER
& PLAUT, 1988)
No entanto, deve ficar claro que a psicologia não trabalha com conceitos
como Bem e Mal, Certo e Errado. Quando falamos de sombra, não a classificamos
como lado do bem ou lado do mal. Acontece que esse arquétipo armazena aquilo
que é considerado mal pelo indivíduo. Como o inconsciente pessoal é formado
pelas experiências que a pessoa tem em sociedade, a sombra tende a armazenar
o que é mal para a sociedade. A sombra, porém, também é responsável pelo
potencial criativo do indivíduo e pelas emoções mais fortes e espontâneas. Por
isso, pessoas muito criativas tendem a parecer loucas às vezes. Logicamente, se o eu for dominado pelo arquétipo da sombra, atingirá a insanidade e se tornará
alguém muito perigoso.
Durante toda a sua carreira nas histórias do Superman, Lex Luthor
representou aquilo que os Estados Unidos não queriam ser, mas, lá no fundo,
eram. Luthor é a sombra americana. Antes de ele aparecer, Superman enfrentava gangsters e homens corruptos em geral. Chega a ser cômico, e muitas vezes ridículo, ver o Superman dos anos trinta e quarenta, com toda a sua força, velocidade e invulnerabilidade, enfrentar criminosos normais, armados apenas com uma pistola comum. Há uma explicação para isso. Superman surgiu durante a Grande Depressão, quando a lei seca estava em vigor e os EUA tentavam manter sua imagem de moralistas puritanos.
Sujeitos como Al Capone estavam por toda parte e era esse tipo de gente que a
“América” queria esconder. Os traficantes de bebidas alcoólicas eram a sombra
nessa época.
Então veio a Segunda Guerra Mundial e aqueles homens engravatados
com seus bigodes engraçados não pareciam mais uma ameaça. Não diante da
maior ameaça de bigode engraçado que o mundo já conheceu: Adolf Hitler. Numa
história entitulada “Super-Homem acaba com a Guerra”, publicada em abril de 1940, o herói se envolve numa Guerra no país fictício de Toran, onde enfrenta
um ditador cruel que pretende dominar o mundo com uma nova arma bélica de
alta tecnologia. O nome do ditador? Luthor.
![]() |
Lex Luthor em sua primeira aparição, quando chamava-se apenas Luthor e tinha cabelo. |
Foi a primeira aparição do arquiinimigo do
Superman, que ainda possuía uma vasta cabeleira
ruiva na época, e é uma referência, ainda que
fantasiosa e exagerada, aos ditadores da época,
que causaram a Segunda Grande Guerra. Fato é
que os EUA sempre tiveram seu lado ditador, sua
busca pela formação de um império ideológico global que acreditasse em seu american way of life.
Siegel e Shuster projetaram, sem saber, sua sombra Americana em Luthor pela
primeira vez. Essa projeção fez com que o personagem se tornasse uma figura
mítica oposta ao herói e que se consolidasse como a sombra do símbolo Americano com o passar dos anos.
![]() |
O Lex Luthor de Gene Hackman no filme de 1978 |
Em Super-Homem, o filme, Lex é um completo panaca, embora
superinteligente. O filme foi lançado em 1978, no auge da Guerra Fria, quando o
maior inimigo dos EUA era a URSS. O povo americano queria acreditar que seu
arquiinimigo era um completo idiota, a despeito das armas de última geração
que pudesse construir e das estratégias que podia criar para dominar mais
algum pedaço do mundo. O mito do Superman nessa época é bastante
maniqueísta e tão Americano que chega a doer. O eu dos EUA, representado no
Superman, estava hiperinflado. O herói era capaz de fazer o tempo da Terra voltar, podia mover planetas sem esforço e seus poderes aumentavam e se
multiplicavam desenfreadamente, indo de super-memória a super-hipnose. Como
num esforço inconsciente para esquecer o perigo de uma Terceira Guerra
Mundial e de um possível holocausto nuclear, a sociedade projetava em seu mito
seu desejo íntimo: que eles (os soviéticos) não sejam tão perigosos quanto
querem nos fazer acreditar. Assim, Luthor se tornava cada vez mais impotente
diante do Superman, que, por sua vez, assumia cada vez mais atributos de um
deus. A respeito desse período, John Byrne escreveu:
“Os elementos do passado trágico do Homem de Aço foram retratados nos
anos sessenta e setenta, mas com um efeito alienante. A paixão por Krypton
tornou-se praticamente ofensiva. Cada exclamação de “Grande Krypton!” era um
insulto ao mundo que havia sido lar do Super-Homem por quase toda sua vida.
Um espiral decadente teve início e parecia muito improvável que se pudesse
fazer alguma coisa para reverter a derrocada final do personagem” (BYRNE,
1997, p.29, grifo nosso).
Umberto Eco também fez menção ao efeito alienante que as histórias do
Superman tinham na época:
“O estar situado numa dimensão temporal permite que atente para a
gravidade e a dificuldade das minhas decisões, mas que ao mesmo tempo atente
para o fato de que devo decidir, de que sou eu que devo decidir e de que esse
meu decidir se liga a uma série indefinida de dever-decidir que envolve todos os
outros homens. [...]Os roteiristas do Superman, ao contrário, eles cogitaram uma solução muito mais sensata e original. Essas estórias desenvolvem-se, assim,
numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – em que
aparece de maneira extremamente confuso o que acontecera antes e o que
acontecerá depois, e quem narra retoma continuamente o fio da estória como se
se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns
pormenores ao que já dissera. [...] Ao habituar-se a esse exercício de presentificação continua do que
acontece, o leitor perde, ao contrário, consciência do fato de que o que acontece
deve desenvolver-se segundo as coordenadas de três estases temporais.
Perdendo consciência delas, esquece os problemas que nelas se baseiam, isto é, a
existência de um liberdade, da liberdade de fazer objetos, do dever de fazê-los,
da dor que esse projetar comporta, da responsabilidade que dele provêm, e
enfim da existência de toda uma comunidade humana cuja progressividade se
baseia sobre o meu projetar”. (ECO, 1970, p.256 a 258 e 261).
Seria paranóia demais acreditar que isso era feito de propósito. Parece
claro que o desejo de fuga da realidade que assolava a sociedade da época era
projetado inconscientemente pelos roteiristas nas histórias. Evidência disso é o
que Byrne diz a respeito da aparente inevitabilidade de “derrocada final” do mito
do Superman. Nenhuma editor em sã consciência mataria sua galinha dos ovos
de ouro desse jeito. Certamente o mito teria caído se os EUA perdessem a guerra
fria. Felizmente, quem caiu foi o muro de Berlim.
Num momento em que as projeções
inconscientes mudavam precedendo as mudanças que
aconteceriam no mundo, a DC comics resolveu
contratar John Byrne para recriar o Superman. O
escritor e desenhista fez uma mudança essencial para
a sobrevivência do mito:
“Talvez a maior de todas as mudanças [que fiz] tenha sido proposta pelo meu colega Marv Wolfman. Antes um cientista maluco, Luthor tornou-se um super-homem dos negócios, o mais poderoso de Metrópolis... até a chegada do Homem de Aço. O herói tirou de Luthor sua posição privilegiada.
Como Salieri em Amadeus, reconhecendo o gênio de Mozart, Luthor sabia que,
para voltar a ser o Número Um, deveria eliminar seu rival. Porém, diferente de
Salieri, Luthor não aceita a ideia de que o Homem de Aço é melhor do que ele e,
por isso, está condenado a fracassar sempre.”(BYRNE, 1997,p.55).
O Lex Luthor de John Byrne na HQ Homem de Aço indo para a cadeia pela primeira vez graças ao Superman, mas sendo solto logo em seguida pela habilidade de seus advogados caríssimos. |
Com essas e outras alterações, Byrne alavancou as vendas das revistas do
Superman. O novo Luthor era imbatível, principalmente pela boa imagem e
reputação que tinha diante do povo de Metrópolis. Era um vilão real, como
muitos que conhecemos de nosso mundo cotidiano. Sem saberem, os
responsáveis pelas histórias do herói acharam uma das falhas principais e a
consertaram:
“O indivíduo que suprime o aspecto animal de sua natureza pode se
tornar civilizado, mas só o consegue às custas da capacidade motivadora da espontaneidade, da criatividade, das fortes emoções e das intuições profundas.
Priva-se da sabedoria de sua natureza instintiva, sabedoria que pode ser mais
profunda que uma outra a ser proporcionada pelo estudo e pela cultura. Uma
vida privada de sombra tende a tornar-se insípida e sem brilho”. (HALL &
NORDBY, 1972, p.40 e 41).
Todavia, a sombra estava de volta e dessa vez no lugar exato de “aquilo
que não quero ser, mas sou” dos Estado Unidos. Num mundo em que a grande
projeção da sombra, a URSS, estava ruindo, a sociedade Americana viu-se
obrigada a olhar para si mesma e fez surgir um mito que gradualmente se tornava
cada vez menos alienante. As histórias não eram mais um “presente contínuo”. Se o Superman era contaminado por
kryptonita numa edição, por exemplo,
passava as próximas três de cama.
Quando Lois cortava o cabelo, ele não
aparecia comprido na edição seguinte,
demorava alguns meses para crescer de
novo. Os fatos passaram a aparecer em
sequência, e a ter consequências. Os
personagens passaram a ter bagagem
interior, lembravam-se de fatos
acontecidos havia muitas edições e
eram afetados por esses fatos. A cada
edição, Lex adquiria mais ódio do Superman pelos mais diversos motivos. Nessa fase, Luthor encontrou sua forma praticamente definitiva, como seria representado em todas as versões seguintes:
a do capitalista selvagem e cínico.
Provando que a era dos quadrinhos alienantes
tinha passado, o roteirista Jeph Loeb colocou Lex Luthor na Casa Branca,
estabelecendo que, no universo ficcional da DC comics, em vez de George W.
Bush, Lex Luthor havia sucedido Bill Clinton como Presidente dos Estados
Unidos da América. As semelhanças entre o Presidente Luthor e o Presidente
Bush são tantas que poderiam ser assunto de outro artigo tranquilamente, mas o
seguinte discurso de Lex é, por ora, suficiente como exemplo:
![]() |
Lex Luthor, Presidente dos Estados Unidos da América do Universo DC |
“Muito obrigado. Eu não tenho muito a dizer, mas quero falar sobre
algumas coisas que ameaçam o nosso país. Todos sabem que o mundo não anda
bem. E agora, graças às nossas forças de inteligência sabemos da proliferação de armas
nucleares em pequenas nações hostis. Não são exatamente países inimigos. Na
verdade são locais nos quais não podemos confiar. Mais do que nunca, a América
deve estar forte e preparada. Devemos estar prontos para qualquer coisa. Por
isso eu lhes peço que não se prendam a politicagens, mas pensem na segurança
de todas as crianças do mundo. Elas não merecem uma vida segura, livre a
ameaça do terror?"(Ed Brubaker, Batman, Batman #1, Editora Abril, p.15 e 16,
maio de 2002)”.
Retomando o Übermench de Nietzche, poderíamos ver em Lex Luthor
uma melhor personificação sua do que o Superman. Afinal, Lex guia-se por sua
própria moral e, tentando comprar até o próprio Homem de Aço, acredita estar “acima do bem e do mal” o que ele demonstra muito bem em Lex Luthor:
Biografia não-autorizada:
“A vida é curta. Eu podia ter ficado como meus pais se tivesse escolhido
naufragar em emoções baratas e bebida, como eles. Em vez disso, decidi me
tornar um deus. Eu controlo vidas, vidas humanas, ao invés de ser controlado.
Posso destruir alguém com um telefonema. [...] meus inimigos continuarão a cair
diante de meu império corporativo”. (HUDNALL, James D; BARRETO, Eduardo;
KUBERT, Adam; Lex Luthor: Biografia não-autorizada, p.44, julho de 1990,
Editora Abril).
![]() |
Lex Luthor e Superman: A Face Paradoxal da América |
O discurso de Lex representa muito bem a filosofia de Nietzche expressa
por um capitalista selvagem. Aliás, é esse lado de Luthor que faz dele a perfeita
sombra do Superman, a outra face da mesma moeda. Vejamos da seguinte
maneira:
Digamos que o Übermench tivesse nascido no Kansas e fosse criado num
meio que prezasse os valores judaico-cristãos de nossa sociedade capitalista ocidental. Esse seria Clark Kent. Agora, digamos que ele nascesse em Nova
Iorque ou em qualquer grande cidade do
ocidente e fosse criado num meio que prezasse os valores capitalistas de nossa sociedade judaico-cristã. Esse seria Lex Luthor.
Juntos, eles representam o conflito da psique da sociedade ocidental que se originou com o puritanismo inglês defensor do acúmulo de bens sem apego a eles. Superman representa os valores altruístas herdados da filosofia judaico-cristã original que sempre entra em conflito com a ganância do capitalismo e do individualismo, permitidos pelas religiões protestantes que predominam nos Estados Unidos. É um conflito moral ancestral, herdado dos ingleses puritanos que colonizaram a América do Norte, e que se manifesta através dos arquétipos do inconsciente coletivo no mito do Superman.
Juntos, eles representam o conflito da psique da sociedade ocidental que se originou com o puritanismo inglês defensor do acúmulo de bens sem apego a eles. Superman representa os valores altruístas herdados da filosofia judaico-cristã original que sempre entra em conflito com a ganância do capitalismo e do individualismo, permitidos pelas religiões protestantes que predominam nos Estados Unidos. É um conflito moral ancestral, herdado dos ingleses puritanos que colonizaram a América do Norte, e que se manifesta através dos arquétipos do inconsciente coletivo no mito do Superman.
Fim da Parte 6
0 comentários:
Postar um comentário