“Cantadas nas catedrais, sussurradas nas sombras... sempre inconstantes!
Raramente imutáveis! Elas trazem uma fragrância milenar e ousam desafiar qualquer lógica.
É assim que se constroem as Lendas”
(John Ostrander, Lendas #4, p.4, Ed Abril, Out/88)
Raramente imutáveis! Elas trazem uma fragrância milenar e ousam desafiar qualquer lógica.
É assim que se constroem as Lendas”
(John Ostrander, Lendas #4, p.4, Ed Abril, Out/88)
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Heitor vs Aquiles no filmeTróia, que retrata a guerra mítica entre Aqueus e Troianos da Ilíada de autoria atribuída ao poeta popular Homero |
Superman pode ter sido o primeiro super-herói das histórias em
quadrinhos, mas certamente não é o primeiro herói de que se ouviu falar com
capacidade de realizar proezas acima das habilidades humanas normais e
também não é o último. Desde os primórdios da civilização, relatos a respeito de
super-homens são encontrados em diversos povos de diferentes culturas e
localidades do mundo. Quem nunca ouviu falar do poderoso Hércules grego,
filho de Zeus com uma mortal, Alcmena, que realizou seus doze trabalhos
prodigiosos, a mando de seu irmão Euristeu? Entre seus atos, Hércules, matou
monstros gigantes, derrotou déspotas, libertou personagens célebres de seus
trágicos destinos e morreu por salvar sua amada. Na própria Grécia, ainda
poderíamos mencionar muitos outros: Ulisses, Aquiles, Heitor, Páris,
Perseu, Édipo, etc.
Os nórdicos, em sua Canção dos Nibelungos, cantavam sobre os feitos
fantásticos de Siegfried, que se tornara imortal ao banhar-se no sangue do
dragão. Os sumérios detém o título de donos da história de herói mais antiga: A Epopéia de Gilgamesh, que conta justamente as aventuras desse herói. Um de
seus maiores feitos foi derrotar o gigante Humbaba, que era tão grande quanto
uma montanha. Mais recente é o mito de Arthur Pendragon, Rei da Inglaterra,
Senhor de Camelot e da Távola Redonda, que buscou o Santo Graal com seus
cavaleiros, empunhando a sagrada Excalibur.
Os livros sagrados de todos os povos estão repletos de histórias sobre
heróis. Os hindus falam a respeito de Karna, que foi abandonado num rio ao
nascer para, depois de crescido, tornar-se um grande líder, assim como o Moisés bíblico e o Sargão babilônico. Abraão, Isaque e Jacó, além do próprio Jesus
Cristo, são exemplos de heróis sagrados, que, embora jamais tenham matado
algum monstro gigante, venceram grandes desafios.
O exemplo tirado da Bíblia que mais se assemelha ao Superman é Sansão, que aliás também é muito parecido com Hércules. Os pais de Sansão não podiam
ter filhos. Então, depois de pedir
muito em suas orações, sua mãe
concebeu-lhe miraculosamente. Em
suas orações, ao pedir um filho, a mãe de Sansão prometera que, se lhe fosse dado “o dedicaria ao Senhor”. Devido a essa promessa, simbolizada por seus
cabelos e barba que nunca poderiam ser cortados, Sansão tornou-se superforte,
super-rápido e praticamente invulnerável. Sozinho, diz o livro dos Juízes de
Israel, ateou fogo em toda a plantação dos filisteus, derrubou mil homens de uma
só vez usando apenas “a queixada de um jumento”, e pôs o templo do deus
Dagom no chão empurrando as pilastras principais que o sustentavam. O fim de
Sansão é tão trágico quanto o de Édipo. Traído por sua amada, Dalila, tem seus
cabelos cortados e perde as forças. Cegado por seus inimigos, os filisteus, morre
no desabamento do templo de Dagom.
Constatado o fato, vem a pergunta: Por que isso acontece? Por que tantos
povos diferentes contam histórias de pessoas tão parecidas? A resposta é
simples e, num primeiro momento, estranha: Porque falamos de nós mesmos. Em seu livro El mito del nacimiento del héroe (1989), Otto Rank cita a
análise de Sigmund Freud sobre o herói grego Édipo, para explicar o fato:
“Si el destino de Edipo nos conmueve es por que habría podido ser el
nuestro (...)”
Não vamos, porém, colocar a carroça na frente dos bois. Primeiro
precisamos identificar um padrão e o mesmo Otto Rank faz isso:
“A lenda padrão poderia ser formulada segundo o seguinte
esquema:
O herói descende de pais da mais alta nobreza, normalmente é filho de um
rei. Sua origem é precedida por dificuldades, tais como a esterelidade
prolongada, ou o coito secreto dos pais, por causa de proibição externa ou outros
obstáculos. Durante a gravidez, ou anteriormente a ela, se produz uma profecia
em forma de sonho ou oráculo que faz advertências contra o nascimento,
normalmente pondo o pai em perigo ou seu representante. Como regra geral, o
menino é abandonado nas águas em um recipiente. Logo é recolhido por animais
ou gente humilde (pastores) e amamentado pela fêmea de algum animal ou uma
mulher de condição modesta. Uma vez transcorrida a infância, descobre sua
origem nobre, de forma bastante variável e logo, por um lado, se vinga de seu pai,
e por outro, obtém o reconhecimento de seus méritos, alcançando, finalmente, as
honras que lhe correspondem”. (RANK, 1989.p.79, Tradução nossa)
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A mãe de Moisés o deixa no rio para não ser morto pelos egípcios na cena de abertura da animação O Príncipe do Egito da Dreamworks |
Todos os personagens heróicos anteriormente citados seguem esse
padrão, inclusive o Superman. Segundo Everardo P.G. Rocha, em seu livro O que
é mito, há uma explicação psicológica para isso:
“Um dos esforços principais de Jung era demonstrar que um mesmo
conjunto de mitos e símbolos aparece em várias sociedades ao redor da Terra.
Povos separados no espaço, distantes no tempo, diferentes na cultura
produziram imagens, figuras míticas e simbologias muito semelhantes. (...) O
inconsciente coletivo manifesta-se em padrões que ele chama, usando uma
expressão de Santo Agostinho, de “arquétipos". O arquétipo significa um
determinado tipo de “impressão” psíquica como se fosse uma marca ou imagem.
Um conjunto de caracteres que, em sua forma e significado são portadores de
motivos mitológicos arcaicos. Aí está, pois, o sentido do mito. Conteúdo e
manifestação do inconsciente coletivo. Encontrado nas mais diversas culturas
humanas e, num passe de mágica arquetípica, reencontrado no mais fundo da
cuca de cada um de nós. O mito para Jung é uma questão de interior da mente.
Ali se origina, ali se manifesta. Reflete-se na exterioridade cultural, nasce na
interioridade psíquica. Está expresso em muitos lugares, e habita apenas aqui
dentro”. (ROCHA, 1985, p.43)
O mito é, na verdade, um sonho coletivo e os sonhos, por sua vez, são
símbolos oriundos do inconsciente. Segundo Jung (ROCHA, 1985), existe uma
região da mente humana chamada inconsciente coletivo, na qual repousam os
sonhos da coletividade em cada indivíduo. Assim, podemos concluir
seguramente que, quando uma narrativa mítica é aceita e construída por um
grande número de pessoas, ela expressa, na verdade, anseios inconscientes de
um povo nela simbolizados.
Os estudos de Jung relativos à mitologia levaram-no a identificar uma série
de relações entre temas mitológicos e o processo de transformação e unificação
dos estratos da personalidade. Chamou essa série de processo de individuação.
Esse processo é decorrente da ação da função transcendente, de fato, é a
sequência das tranformações transcendentes do ser. A função transcendente é
um processo através do qual, segundo Jung (SAMUELS, SHORTER & PLAUT,
1988), a psique humana reestrutura a maneira de um indivíduo encarar a vida
depois que seus desejos, valores, consciência, etc, entram em colapso. Esse
colapso e a renovação de atitude que o sucede, podem variar muito, indo desde
uma simples superação de uma mágoa até mudanças bruscas de atitude e de
comportamento, positiva ou negativamente. O processo de individuação é como
um espiral ascendente e acontece durante toda a vida de todas as pessoas. Pode
ser retardado, mas nunca impedido.
Jung também faz analogia, comparando a vida com o sol. Até o ápice da
vida (por volta dos 36 anos) a pessoa se desenvolve, cresce em todos os sentidos
e busca conquistar o mundo, como o sol que nasce e chega ao meio-dia, momento em que brilha mais. Nesse
período, o maior conflito é a
separação dos pai e “o andar
com as próprias pernas”.
Depois disso, a pessoa volta-
se para si-mesma, torna-se
mais introspectiva, e como o
sol, desce ao poente até a
“morte”. Aqui o conflito
principal é a aceitação da
morte como um acontecimento iminente. A trajetória do sol e sua
analogia com o percurso da vida humana é um motivo arquetípico, encontrado
em mitos de todos os tempos e lugares. Nessas narrativas, o herói faz coisas
extraordinárias e depois entra em declínio, passa por provações e lutas acirradas
e, por fim, morre. Sua morte, no entanto, nunca é definitiva. O herói sempre
renasce, assim como o sol a cada novo dia. O herói renascido é o indivíduo comum renovado.
Nos mitos, o momento de crise, simbolizado por Jung como o momento
em que o sol está ausente, é o monstro, o inimigo terrível contra quem se luta. Ao sair vencedor, o herói sempre sai diferente, fortalecido pelo combate travado
com o inimigo. É como o caso, por exemplo, de Siegfried, que se torna imortal
ao matar o dragão e banhar-se em seu sangue. Siegfried, o herói, une-se ao
dragão, o monstro, para tornar-se algo novo e superar a crise. O heroi é o
personagem central da narração, cheio de virtudes e poderes extraordinários. É
uma imagem exaltada do eu, que Jung chamou de “Arquétipo do herói”. Esse
arquétipo origina-se da ideia do insconsciente coletivo de ideal. Ao expor o que é
ideal, o inconsciente também manifesta traços da personalidade que se opõem
ao arquétipo heróico, criando o que Jung chama de “a sombra do eu”, ou apenas
“sombra”. A sombra é outro arquétipo presente nos mitos como alguém mau,
traiçoeiro, enfim, tudo o que o herói não é e não quer ser. Isso acontece porque
esses dois lados fazem parte da psique humana. Outro arquétipo sempre
presente nos mitos é a chamada ânima. É a parte feminina da personalidade
masculina. Ele representa o inconsciente masculino de modo geral e é através
dele que o homem entra em contato com seu inconsciente. Pela análise de
relação entre o herói e as figuras que personificam sua sombra e sua ânima, é
possível acompanhar o desenvolvimento do relacionamento do herói com seu
inconsciente e acompanhar o processo de individuação.
Fim da parte 2
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