sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

SUPERMAN - ANÁLISE DE UM MITO AMERICANO PARTE 4 O MITO DO SUPER-HERÓI AMERICANO




“Eu seria um cretino se não percebesse que [os super-heróis são] uma mitologia moderna. Homem-Aranha, Superman e Batman são ícones Americanos.”
(Christian Bale, Intérprete de Bruce Wayne/Batman em Batman Begins)
 Psique
                  Antes de continuarmos, é necessário que alguns conceitos utilizados na análise que se seguirá fiquem bem claros. Já mencionamos que os mitos são oriundos do inconciente coletivo, mas, afinal o que é isso? O inconsciente coletivo é im conceito elaborado pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung, que desenvolveu uma teoria a respeito da estrutura da personalidade. Por isso, para entendermos precisamente o que é inconsciente coletivo, precisamos entender a estrutura da personalidade humana como Jung a entendia. Ele se referia a ela como psique, um outro nome para mente, alma ou espírito, que se divide em duas partes básicas: a consciência e a inconsciência.

              A consciência é chamada de Eu ou Ego e se manifesta quando estamos acordados. 

        “Entendemos por ‘eu’ aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam. É este fator que constitui como que o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a personalidade empírica, o eu é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa”. (JUNG, 1982, p.1)

     O inconsciente, por sua vez, não é tão simples quanto o lado consciente. Divide-se primeiramente, em inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. Podemos definir o inconsciente pessoal da seguinte maneira:

    “É o receptáculo que contém todas as atividades psíquicas e os conteúdos que não se harmonizam com a [...] função consciente. Ou então foram experiências outrora conscientes que passaram a ser reprimida ou desconsideradas por diversos motivos, como por exemplo, um pensamento entristecedor, um problema não resolvido, um confilito pessoal ou um problema moral. Ficam muitas vezes esquecidos, simplesmente porque não eram importantes ou porque assim pareceram na época em que foram experimentados. Todas as experiências fracas demais para atingir a consciência, ou para nela permanecer, ficam armazenadas no inconsciente pessoal”. (HALL & NORDBY, 1972, p.28)

         Já o inconsciente coletivo não é formado por experiências pessoais, mas herdado. Todos nós nascemos com ele e o possuímos independentemente de nossas experiências pessoais, diferente do inconsciente pessoal que se forma no decorrer da vida. O conteúdo do inconsciente pessoal um dia foi consciente, o do inconsciente coletivo nunca o foi.


     “O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, em geral denominadas ‘imagens primordiais' por Jung. [...] diz respeito ao desenvolvimento mais primitive da psique. O homem herda tais imagens do passado ancestral, passado que inclui todos os antecessores humanos [...]. Estas imagens étnicas não são herdadas no sentido de uma pessoa lembra-se delas conscientemente, ou de ter visões como as dos antepassados. São antes predisposições ou potencialidades no experimentar e no responder ao mundo tal como os antepassados”. (HALL & NORDBY, 1972, p.32).

      Assim, o que era hábito para nossos ancestrais tornou-se instinto para nós. Sabemos, por exemplo, que cobras são perigosas, ainda que nunca tenhamos sido picados por nenhuma. Sabemos que precisamos comer quando temos fome e beber quando temos sede, instintivamente. No entanto, também sabemos que devemos ter cautela para que aquilo que ingerimos não nos envenene. Tudo isso não depende de experiência pessoal para que seja adquirido, já nasce conosco. Faz parte do inconsciente coletivo.

   “Os conteúdos do inconsciente coletivo estimulam um padrão pré- formado de comportamento pessoal que o indivíduo seguirá desde o dia do nascimento. ‘A forma do mundo em que nasce é-lhe inata como uma imagem virtual" (vol.7, p.188). 

    "Esta imagem virtual transforma-se em realidade consciente ao identificar-se com os objetos que lhe são correspondentes. Por exemplo: quando existe no inconsciente coletivouma imagem virtual da mãe, tal imagem expressar-se-á logo que a criancinha perceber e reagir à mãe verdadeira. De modo que os conteúdos do inconsciente coletivo são responsáveis pela seletividade da percepção e da ação. Percebemos facilmente algumas coisas e a elas reagimos de certas maneiras porque o inconsciente coletivo está predisposto a elas”. (HALL & NORDBY, 1972, p.33).

    Essas “imagens virtuais”são chamadas arquétipos. Assim, o arquétipo da mãe reage e é associado à pessoa da mãe concreta e específica. O mesmo acontece com os outros arquétipos, que são inúmeros. Alguns deles são muito importantes para a formação da personalidade e Jung estudou-os mais minuciosamente. São eles: persona, anima e animus, sombra e si-mesmo (self). Os arquétipos só são constatados através dos sonhos, símbolos, fantasias, visões, mitos e arte. O mito, como já foi dito, é o sonho de uma sociedade, “um auto retrato espontâneo, em forma simbólica, da real situação do inconsciente”(SAMUEL, SHORTER & PLAUT, 1988, p.) Assim como é possível analisar uma pessoa através de seus sonhos, é possível compreender uma sociedade através de seu mito e vice-versa.
Os mitos (que são na verdade sonhos coletivos) nos contam coisas
que sempre soubemos a vida toda, mas que eram óbvias demais para serem vistas. 
  “A antropologia, por exemplo, possui uma vastíssima coleção de interpretações de mitos. Esses trabalhos dos antropólogos, via de regra, têm por finalidade interpretar o mito para descobrir o que este pode revelar sobre as sociedades de onde o mito provém. É a interpretação do mito como forma de compreender uma determinada estrutura social. Neste linha, a antropologia usualmente assume a existência de uma relação entre o mito e o contexto social. O mito é, pois, capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção da existência e das relações que os homens devem manter entre si com o mundo que os cerca. Isto é possível de ser investigado tanto pela análise de um único mito quanto de grupos de mitos e até mesmo da mitologia complete de uma sociedade”. (ROCHA, 1982,p.12)


    Portanto, no restante deste trabalho discutiremos esses arquétipos como manifestados no mito do Superman. Como eles se manifestam de formas diferentes devido à influência do inconsciente pessoal, explicaremos a forma em que se apresentam através da cultura que produziu o mito, ou seja, a dos Estados Unidos.

Identidade Secreta


     Clark Kent era, psiquicamente, um garoto comum até seus quinze anos quando mudanças maiores do que as que ocorrem normalmente na adolescência começaram a afetá-lo. Os poderes sobre-humanos que manifestava espontaneamente certamente já mexiam com sua mente, mas seu maior choque aconteceu quando descobriu que era extraterrestre.

            Na versão de Byrne, tal descoberta é a razão de sua partida para Metrópolis. Siegel e Shuster omitem esse momento da vida do personagem, assim como Mark Waid em O Legado das Estrelas (2003), enquanto Richard Donner prefere mostrar o encontro com a nave que trouxe Kal-El à Terra como um momento de renascimento após a morte de seu pai adotivo, Jonathan Kent. Quem decide discutir os conflitos gerados por esse evento na vida de Clark Kent mais profundamente são Alfred Gough e Miles Millar, criadores da série Smallville, que retrata a juventude do personagem.

A Evolução de Clark Kent na série de tv Smallville

        A série mostra o momento da descoberta de cada um dos superpoderes e acrescenta muito à mitologia do personagem. Podemos entender como as identidades de Clark Kent foram surgindo conforme sua personalidade se formava. Assim, identificamos o principal fator para a origem da vida dupla que o Superman leva: a influência kryptoniana, através de Jor-El, e a humana, através de Jonathan e Martha Kent agindo simultaneamente sobre ele durante toda a adolescência. Jonathan e Martha Kent, os pais adotivos do Superman.

      Relacionado a isso, temos o que Jung chamou de arquétipo da Grande mãe e do Velho Sábio. Um exemplo bastante conhecido de uma manifestação mítica desse arquétipo é o mago Merlin. Para alguns um santo, para outros um feiticeiro, Merlin de Ávalon treinou e conduziu Arthur Pendragon ao trono da Inglaterra e foi seu conselheiro até o dia da própria morte. Em O Poder do Mito (1989), Joseph Campbell aponta duas figuras bem mais recentes como representantes do velho sábio: Ben Kenobi e Mestre Yoda de Guerra nas Estrelas. Ulisses, de A Odisséia de Homero, tinha em Atena sua Grande Mãe, que não apenas guiou-o de volta para casa, mas também serviu de conselheira para o herdeiro de Ítaca, Telêmaco. Muitos exemplos desse arquétipo poderiam ser citados, tanto em mitos modernos quanto em antigos. O fato é, como se pode constatar, que ele é o arquétipo que representa o responsável pelo treinamento, educação e formação do herói.

      No caso de Clark Kent, há dois “Velhos sábios" e "Grandes Mães”que lhe ensinam e conduzem-no de formas que, às vezes, são opostas. Eles são os Kents e os El. Jonatha e Martha Kent ensinam Clark a esconder seus poderes, enquanto Jor-El ensina-o a usar seus poderes. Os Kent querem que Clark tenha uma vida normal, emprego e família. Jor-El quer que Clark preserve o legado kryptoniano e se torne um ser superior. Treinado por Jor-El, Clark é levado a se tornar um deus, mas guiado pelos Kent se torna um deus benevolente e altruísta, um herói.

Martha e Jonathan Kent, A Grande Mãe e o Velho Mestre de Clark na Terra


Lara e Jor El, A Grande Mãe e o Velho Mestre de Clark no Céu. 


       Como mostra O Legado das Estrelas (WAID & YU, 2003), Clark vive escondendo seus poderes até os vinte e cinco anos, quando passa a não suportar mais a vida dupla e cria o traje de Superman, passando a usar óculos em seu convívio social. A partir de então, o personagem passa a representar três arquétipos: a persona, quando está em Metrópolis, usando óculos, falando para dentro, andando desajeitadamente e usando cabelo “lambido”; o si-mesmo, quando está de traje, de capa e de pega-rapaz; e o herói, representado por sua totalidade quando está na fazenda de seus pais, sem óculos e sem traje. A partir de agora nos referiremos a eles como o repórter, o kryptoniano e o fazendeiro, respectivamente.

  O repórter é a imagem que Clark quer que as pessoas tenham deles a fim de que elas não descubram que ele é o Superman. É como o repórter que as pessoas o vêem e é o reporter que herdou seu nome de batismo. É exatamente isso que persona é, o arquétipo social:

   “A palavra persona significa originalmente uma máscara usada por um ator e que lhe permite compor uma determinada personagem para uma peça. (...) Na psicologia junguiana o arquétipo de persona atende a um objetivo semelhante: dá a um indivíduo a possibilidade de compor uma personagem que necessarimente não seja ele mesmo. Persona é a máscara ou fachada ostentada publicamente com a intenção de provocar uma impressão favorável a fim de que a sociedade o aceite”(HALL & NORDBY, 1972, p.36).


   O repórter é consequência da criação de Clark Kent por Jonathan e Martha. Clark quer ter família, quer ter um emprego, quer poder ser um cidadão comum e fazer coisas que o kryptoniano jamais poderia fazer. Para conciliar as duas pessoas que aprendeu a ser, ele cria os dois disfarces:

 “- Mãe, Pai... Vocês sempre me ensinaram a ser bom com as pessoas. É o melhor presente que vocês me deram. Mas eu me sinto atuando de mãos atadas... me escondendo o tempo todo... ficando em segredo... ficando... isolado. [...] Não vou fugir mais daquilo que sou.
- Você é Clark Kent. Você é nosso filho.
- Mas também sou outra pessoa, pai. Já é tempo de descobrir quem é o outro e acho que sei por onde começar. Mãe... ainda costura?”(WAID & YU, 2003, p.67).

   Nascia a personificação de si-mesmo, Superman, o lado kryptoniano de Clark Kent.

Superman inteiramente possuído por seu lado Kryptoniano na HQ Eradication


  “O princípio organizador da personalidade é um arquétipo a que Jung deu o nome de [si-mesmo]. O [si-mesmo] é o principal arquétipo do inconsciente coletivo, assim como o sol é o centro do sistema solar. [...] é o arquétipo da ordem, da organização e da unificação; e atria a si e harmoniza os demais arquétipos e suas atuações nos complexos e na consciência, une a personalidade conferindo-lhe um sendo de “unidade”e firmeza. Quando uma pessoa declara sentir-se em paz consigo mesma e com o mundo, podemos estar certos de que o arquétipo do [si-mesmo] está exercendo com eficácia o seu trabalho. Por outro lado, quando se sente ‘fora dos eixos’e insatisfeita ou num conflito mais sério e tem a impressão de que ‘desmorona’, é porque o [si mesmo] não está atuando de modo conveniente.” (HALL & NORDBY, 1972, P.43).

   É isso que o super-herói kryptoniano faz: vigia o tempo todo, alerta para manter tudo em ordem. Quando ele não faz seu trabalho todos os outros personagens (os outros arquétipos) vão mal. É com o kryptoniano que toda a cidade de Metrópolis (todo o inconsciente) se relaciona diretamente e é em relação a ele que todos os arquétipos se comportam bem ou mal. O si-mesmo também é praticamente inalterável, o que permanence virtualmente a mesma desde 1938.

 Mais complicada de analisar é a figura do fazendeiro que encarna o arquétipo do herói. Segundo o Dicionário Crítico de Análise Junguiana, o heroi é:

“Um motivo mitológico que corresponde ao self [si-mesmo] inconsciente do homem; de acordo com Jung, úm ser quase-humano que simboliza as ideias, formas e forças que moldam ou dominam a alma’(CW 5, parág. 259). Ver MITO. A imagem do herói incorpora as mais ponderosas aspirações e revela a maneira pela qual são idealemnte compreendidas e realizadas. [...] Numa visão intrapsíquica, ele representa a vontade e capacidade de procurer e suportar repetidas transformações em busca de totalidade ou significado. Portanto, às vezes parece ser o ego, outras vezes, o self. É o eixo ego-self personificado”. (SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988).


   O fazendeiro é o elo entre o repórter e o kryptoniano, é o que os unifica, por isso, às vezes, é o si-mesmo, outras vezes, é apenas o lado consciente e real de Clark Kent e parece-se com o eu. Os três arquétipos se confundem em vários momentos por serem parte do mesmo personagem. Há momentos em que o kryptoniano é o portador do símbolo que incorpora “as mais ponderosas aspirações e revela a maneira pela qual são idealmente compreendidas e realizadas”. (SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988). 


    No entanto, o fazendeiro parece representar melhor o herói, pois já fazia parte da jornada muito antes do aparecimento do repórter de óculos ou do kryptoniano de capa.

Segundo alguns teóricos do mito, as identidades secretas do Superman estão entre seus maiores atrativos:
  
  “Essa camuflagem humilhante de um herói cujos poderes são literalmente ilimitados, revive um tema mítico bastante conhecido. Em última análise, o mito do Superman satisfaz às nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se, um dia um ‘personagem excepcional’, um ‘herói’”. (ELIADE, 1972, p. 159).

   Ariel Dorfman e Manuel Jofré também apresentam colocações úteis sobre o assunto:

   “Agora começamos a compreender que a máscara está aí também para que haja confiança no protagonista, para que, por mais superior que possa ser herói em capacidade e virtude, haja familiaridade e proximidade. Os enormes poderes de todo super-herói estão relativizados por certas falhas ou debilidades que permitem a identificação, que a exigem emocionalmente. Pode tratar-se do outro lado na personalidade do herói, um Clark Kent fraco e covarde. Ou da Krytonita. [...] Mas essa debilidade, essa ligação com o leitor é também o que configura a oposição do super-herói, seu ponto de diferenciação, com o aparato official, público, que também tem seu lugar dentro das historietas [...] a garantia de sua marginalidade, de sua vida privada, de sua recusa à impessoalidade do Estado público.

  As características do super-herói são, portanto, o resultado das necessidades do leitor do mundo capitalista, a forma pela qual o sistema precisa apresentar a violência nos meios de comunicação de massa. Não pela vontade de tal ou qual conspirador intelectual, mas sim pelas exigências que impõem as contradições que o espectador sente e quer resolver”. (DORFMAN & JOFRÉ, 1978, p. 63 e 64).

  Portanto, vemos manifestar-se o mito, através do surgimento da identidade secreta, um anseio inconsciente do homem moderno de atingir seu ideal (si-mesmo) sem negligenciar sua vida social (persona), diferentemente do que acontecia com o mito do herói na antiguidade, que geralmente abandonava tudo quando partia para sua missão em ‘busca de totalidade ou significado’(SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988).


Fim da Parte 4



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