Psique
Antes de continuarmos, é
necessário que alguns conceitos utilizados na análise que se seguirá fiquem bem
claros. Já mencionamos que os mitos são oriundos do inconciente coletivo, mas,
afinal o que é isso? O inconsciente coletivo é im conceito elaborado pelo
psicanalista suíço Carl Gustav Jung, que desenvolveu uma teoria a
respeito da estrutura da personalidade. Por isso, para entendermos
precisamente o que é inconsciente coletivo, precisamos entender a estrutura da
personalidade humana como Jung a entendia. Ele se referia a ela como psique, um
outro nome para mente, alma ou espírito, que se divide em duas partes básicas:
a consciência e a inconsciência.
A consciência é chamada de Eu ou Ego e se
manifesta quando estamos acordados.
“Entendemos por ‘eu’ aquele fator complexo com o qual
todos os conteúdos conscientes se relacionam. É este fator que constitui como
que o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a
personalidade empírica, o eu é o sujeito de todos os atos conscientes da
pessoa”. (JUNG, 1982, p.1)
O inconsciente, por sua vez, não é tão simples quanto o lado consciente.
Divide-se primeiramente, em inconsciente pessoal e inconsciente coletivo.
Podemos definir o inconsciente pessoal da seguinte maneira:
“É o receptáculo que contém todas as atividades psíquicas e os
conteúdos que não se harmonizam com a [...] função consciente. Ou então foram
experiências outrora conscientes que passaram a ser reprimida ou
desconsideradas por diversos motivos, como por exemplo, um pensamento
entristecedor, um problema não resolvido, um confilito pessoal ou um problema
moral. Ficam muitas vezes esquecidos, simplesmente porque não eram importantes
ou porque assim pareceram na época em que foram experimentados. Todas as
experiências fracas demais para atingir a consciência, ou para nela permanecer,
ficam armazenadas no inconsciente pessoal”. (HALL & NORDBY, 1972, p.28)
Já o inconsciente coletivo não é formado por experiências
pessoais, mas herdado. Todos nós nascemos com ele e o possuímos
independentemente de nossas experiências pessoais, diferente do inconsciente
pessoal que se forma no decorrer da vida. O conteúdo do inconsciente pessoal um
dia foi consciente, o do inconsciente coletivo nunca o foi.
“O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, em
geral denominadas ‘imagens primordiais' por Jung. [...] diz respeito ao
desenvolvimento mais primitive da psique. O homem herda tais imagens do passado
ancestral, passado que inclui todos os antecessores humanos [...]. Estas
imagens étnicas não são herdadas no sentido de uma pessoa lembra-se delas
conscientemente, ou de ter visões como as dos antepassados. São antes
predisposições ou potencialidades no experimentar e no responder ao mundo tal
como os antepassados”. (HALL & NORDBY, 1972, p.32).
Assim, o que era hábito para nossos ancestrais tornou-se instinto para
nós. Sabemos, por exemplo, que cobras são perigosas, ainda que nunca tenhamos
sido picados por nenhuma. Sabemos que precisamos comer quando temos fome e beber
quando temos sede, instintivamente. No entanto, também sabemos que devemos ter
cautela para que aquilo que ingerimos não nos envenene. Tudo isso não depende
de experiência pessoal para que seja adquirido, já nasce conosco. Faz parte do
inconsciente coletivo.
“Os
conteúdos do inconsciente coletivo estimulam um padrão pré- formado de
comportamento pessoal que o indivíduo seguirá desde o dia do nascimento.
‘A forma do mundo em que nasce é-lhe inata como uma imagem virtual"
(vol.7, p.188).
"Esta imagem virtual transforma-se em realidade consciente ao identificar-se com
os objetos que lhe são correspondentes. Por exemplo: quando existe no
inconsciente coletivouma imagem virtual da mãe, tal imagem expressar-se-á
logo que a criancinha perceber e reagir à mãe verdadeira. De modo que
os conteúdos do inconsciente coletivo são responsáveis pela seletividade
da percepção e da ação. Percebemos facilmente algumas coisas e a elas reagimos
de certas maneiras porque o inconsciente coletivo está predisposto a elas”.
(HALL & NORDBY, 1972, p.33).
Essas “imagens virtuais”são chamadas arquétipos. Assim, o arquétipo da mãe
reage e é associado à pessoa da mãe concreta e específica. O mesmo acontece com
os outros arquétipos, que são inúmeros. Alguns deles são
muito importantes para a formação da personalidade e Jung estudou-os mais
minuciosamente. São eles: persona, anima e animus, sombra e si-mesmo
(self). Os arquétipos só são constatados através dos sonhos, símbolos,
fantasias, visões, mitos e arte. O mito, como já foi dito, é o sonho de uma
sociedade, “um auto retrato espontâneo, em forma simbólica, da real situação do
inconsciente”(SAMUEL, SHORTER & PLAUT, 1988, p.) Assim como é
possível analisar uma pessoa através de seus sonhos, é possível
compreender uma sociedade através de seu mito e vice-versa.
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Os mitos (que são na verdade sonhos coletivos) nos contam coisas que sempre soubemos a vida toda, mas que eram óbvias demais para serem vistas. |
“A
antropologia, por exemplo, possui uma vastíssima coleção de interpretações de
mitos. Esses trabalhos dos antropólogos, via de regra, têm por finalidade
interpretar o mito para descobrir o que este pode revelar sobre as sociedades
de onde o mito provém. É a interpretação do mito como forma de compreender uma
determinada estrutura social. Neste linha, a antropologia usualmente assume a
existência de uma relação entre o mito e o contexto social. O mito é, pois,
capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção da existência e
das relações que os homens devem manter entre si com o mundo que os cerca. Isto
é possível de ser investigado tanto pela análise de um único mito quanto de
grupos de mitos e até mesmo da mitologia complete de uma sociedade”.
(ROCHA, 1982,p.12)
Portanto, no restante deste trabalho discutiremos esses arquétipos como
manifestados no mito do Superman. Como eles se manifestam de formas diferentes
devido à influência do inconsciente pessoal, explicaremos a forma em que se
apresentam através da cultura que produziu o mito, ou seja, a dos Estados
Unidos.
Identidade
Secreta
Clark Kent era, psiquicamente, um garoto comum
até seus quinze anos quando mudanças maiores do que as que ocorrem normalmente
na adolescência começaram a afetá-lo. Os poderes sobre-humanos que manifestava
espontaneamente certamente já mexiam com sua mente, mas seu maior
choque aconteceu quando descobriu que era extraterrestre.
Na versão de
Byrne, tal descoberta é a razão de sua partida para Metrópolis. Siegel
e Shuster omitem esse momento da vida do personagem, assim como Mark
Waid em O Legado das Estrelas (2003), enquanto Richard Donner prefere
mostrar o encontro com a nave que trouxe Kal-El à Terra como um momento de
renascimento após a morte de seu pai adotivo, Jonathan Kent. Quem decide
discutir os conflitos gerados por esse evento na vida de Clark Kent mais
profundamente são Alfred Gough e Miles Millar, criadores da série Smallville,
que retrata a juventude do personagem.
A série mostra o momento da descoberta de cada um dos
superpoderes e acrescenta muito à mitologia do personagem. Podemos entender
como as identidades de Clark Kent foram surgindo conforme sua personalidade se
formava. Assim, identificamos o principal fator para a origem da vida dupla que
o Superman leva: a influência kryptoniana, através de Jor-El, e a humana,
através de Jonathan e Martha Kent agindo simultaneamente sobre ele durante toda
a adolescência. Jonathan e Martha Kent, os pais adotivos do Superman.
Relacionado a isso, temos o que Jung chamou de arquétipo da Grande mãe e
do Velho Sábio. Um exemplo bastante conhecido de uma manifestação mítica desse
arquétipo é o mago Merlin. Para alguns um santo, para outros um feiticeiro,
Merlin de Ávalon treinou e conduziu Arthur Pendragon ao trono da
Inglaterra e foi seu conselheiro até o dia da própria morte. Em O Poder
do Mito (1989), Joseph Campbell aponta duas figuras bem mais recentes como
representantes do velho sábio: Ben Kenobi e Mestre Yoda de Guerra nas Estrelas.
Ulisses, de A Odisséia de Homero, tinha em Atena sua Grande Mãe, que não
apenas guiou-o de volta para casa, mas também serviu de conselheira para o
herdeiro de Ítaca, Telêmaco. Muitos exemplos desse arquétipo poderiam ser
citados, tanto em mitos modernos quanto em antigos. O fato é, como se pode
constatar, que ele é o arquétipo que representa o responsável pelo
treinamento, educação e formação do herói.
No caso de Clark Kent, há dois “Velhos sábios" e "Grandes Mães”que lhe
ensinam e conduzem-no de formas que, às vezes, são opostas. Eles são os Kents e
os El. Jonatha e Martha Kent ensinam Clark a esconder seus poderes, enquanto
Jor-El ensina-o a usar seus poderes. Os Kent querem que Clark tenha uma vida normal,
emprego e família. Jor-El quer que Clark preserve o legado kryptoniano
e se torne um ser superior. Treinado por Jor-El, Clark é levado a se
tornar um deus, mas guiado pelos Kent se torna um deus benevolente e altruísta,
um herói.
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Martha e Jonathan Kent, A Grande Mãe e o Velho Mestre de Clark na Terra |
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Lara e Jor El, A Grande Mãe e o Velho Mestre de Clark no Céu. |
Como mostra O Legado das Estrelas (WAID & YU, 2003), Clark
vive escondendo seus poderes até os vinte e cinco anos, quando passa a não
suportar mais a vida dupla e cria o traje de Superman, passando a usar óculos
em seu convívio social. A partir de então, o personagem passa a representar
três arquétipos: a persona, quando está em Metrópolis, usando óculos, falando
para dentro, andando desajeitadamente e usando cabelo “lambido”; o si-mesmo,
quando está de traje, de capa e de pega-rapaz; e o herói, representado por sua totalidade
quando está na fazenda de seus pais, sem óculos e sem traje. A partir de agora
nos referiremos a eles como o repórter, o kryptoniano e o
fazendeiro, respectivamente.
O repórter
é a imagem que Clark quer que as pessoas tenham deles a fim de que elas não
descubram que ele é o Superman. É como o repórter que as pessoas o vêem e é o
reporter que herdou seu nome de batismo. É exatamente isso que persona é, o
arquétipo social:
“A
palavra persona significa originalmente uma máscara usada por um ator e que lhe
permite compor uma determinada personagem para uma peça. (...) Na psicologia
junguiana o arquétipo de persona atende a um objetivo semelhante: dá a um
indivíduo a possibilidade de compor uma personagem que necessarimente não seja
ele mesmo. Persona é a máscara ou fachada ostentada publicamente com a
intenção de provocar uma impressão favorável a fim de que a sociedade o aceite”(HALL
& NORDBY, 1972, p.36).
O repórter é
consequência da criação de Clark Kent por Jonathan e Martha. Clark quer ter família,
quer ter um emprego, quer poder ser um cidadão comum e fazer coisas que o
kryptoniano jamais poderia fazer. Para conciliar as duas pessoas que aprendeu a
ser, ele cria os dois disfarces:
“- Mãe, Pai...
Vocês sempre me ensinaram a ser bom com as pessoas. É o melhor presente que
vocês me deram. Mas eu me sinto atuando de mãos atadas... me escondendo o tempo
todo... ficando em segredo... ficando... isolado. [...] Não vou fugir mais
daquilo que sou.
- Você é Clark
Kent. Você é nosso filho.
- Mas também sou
outra pessoa, pai. Já é tempo de descobrir quem é o outro e acho que sei por
onde começar. Mãe... ainda costura?”(WAID & YU, 2003, p.67).
Nascia a personificação de si-mesmo, Superman, o lado kryptoniano de
Clark Kent.
“O
princípio organizador da personalidade é um arquétipo a que Jung deu o nome de
[si-mesmo]. O [si-mesmo] é o principal arquétipo do inconsciente coletivo,
assim como o sol é o centro do sistema solar. [...] é o arquétipo da ordem, da
organização e da unificação; e atria a si e harmoniza os demais arquétipos e
suas atuações nos complexos e na consciência, une a personalidade
conferindo-lhe um sendo de “unidade”e firmeza. Quando uma pessoa declara
sentir-se em paz consigo mesma e com o mundo, podemos estar certos de que o
arquétipo do [si-mesmo] está exercendo com eficácia o seu trabalho. Por outro
lado, quando se sente ‘fora dos eixos’e insatisfeita ou num conflito mais sério
e tem a impressão de que ‘desmorona’, é porque o [si mesmo] não está atuando
de modo conveniente.” (HALL & NORDBY, 1972, P.43).
É
isso que o super-herói kryptoniano faz: vigia o tempo todo, alerta para manter
tudo em ordem. Quando ele não faz seu trabalho todos os outros personagens (os
outros arquétipos) vão mal. É com o kryptoniano que toda a cidade de Metrópolis
(todo o inconsciente) se relaciona diretamente e é em relação a ele que todos
os arquétipos se comportam bem ou mal. O si-mesmo também é
praticamente inalterável, o que permanence virtualmente a mesma desde 1938.
Mais
complicada de analisar é a figura do fazendeiro que encarna o arquétipo do
herói. Segundo o Dicionário Crítico de Análise Junguiana, o heroi é:
“Um motivo
mitológico que corresponde ao self [si-mesmo] inconsciente do homem; de acordo
com Jung, úm ser quase-humano que simboliza as ideias, formas e forças que
moldam ou dominam a alma’(CW 5, parág. 259). Ver MITO. A imagem do herói
incorpora as mais ponderosas aspirações e revela a maneira pela qual são
idealemnte compreendidas e realizadas. [...] Numa visão intrapsíquica, ele representa
a vontade e capacidade de procurer e suportar repetidas transformações em busca
de totalidade ou significado. Portanto, às vezes parece ser o ego, outras
vezes, o self. É o eixo ego-self personificado”. (SAMUELS,
SHORTER & PLAUT, 1988).
O
fazendeiro é o elo entre o repórter e o kryptoniano, é o que os unifica, por
isso, às vezes, é o si-mesmo, outras vezes, é apenas o lado consciente e real
de Clark Kent e parece-se com o eu. Os três arquétipos se confundem em vários
momentos por serem parte do mesmo personagem. Há momentos em que o kryptoniano
é o portador do símbolo que incorpora “as mais ponderosas aspirações e
revela a maneira pela qual são idealmente compreendidas e realizadas”.
(SAMUELS, SHORTER & PLAUT, 1988).
Segundo alguns
teóricos do mito, as identidades secretas do Superman estão entre seus maiores
atrativos:
“Essa camuflagem humilhante de um herói cujos poderes são literalmente ilimitados, revive um tema mítico bastante conhecido. Em última análise, o mito do Superman satisfaz às nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se, um dia um ‘personagem excepcional’, um ‘herói’”. (ELIADE, 1972, p. 159).
Ariel Dorfman e Manuel Jofré também apresentam colocações úteis sobre o
assunto:
“Agora começamos a compreender que a máscara está aí também para que haja
confiança no protagonista, para que, por mais superior que possa ser herói em
capacidade e virtude, haja familiaridade e proximidade. Os enormes poderes de
todo super-herói estão relativizados por certas falhas ou debilidades que
permitem a identificação, que a exigem emocionalmente. Pode tratar-se do outro
lado na personalidade do herói, um Clark Kent fraco e covarde. Ou da Krytonita.
[...] Mas essa debilidade, essa ligação com o leitor é também o que configura a
oposição do super-herói, seu ponto de diferenciação, com o aparato official,
público, que também tem seu lugar dentro das historietas [...] a garantia de
sua marginalidade, de sua vida privada, de sua recusa à impessoalidade do
Estado público.
As características do super-herói são, portanto, o resultado das
necessidades do leitor do mundo capitalista, a forma pela qual o sistema
precisa apresentar a violência nos meios de comunicação de massa. Não pela
vontade de tal ou qual conspirador intelectual, mas sim pelas exigências que
impõem as contradições que o espectador sente e quer resolver”. (DORFMAN
& JOFRÉ, 1978, p. 63 e 64).
Portanto,
vemos manifestar-se o mito, através do surgimento da identidade secreta, um
anseio inconsciente do homem moderno de atingir seu ideal (si-mesmo) sem
negligenciar sua vida social (persona), diferentemente do que acontecia com o
mito do herói na antiguidade, que geralmente abandonava tudo quando partia para
sua missão em ‘busca de totalidade ou significado’(SAMUELS, SHORTER
& PLAUT, 1988).
Fim da Parte 4
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